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Não pagamento de ICMS declarado é crime? STF decide em dezembro

Letícia Silva Esquiapati

Advogada Tributarista no Balera, Berbel & Mitne Advogados

Foi pautado para o dia 11 de dezembro de 2019 o julgamento, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), do Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) nº 163.334/SC, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, o qual trará o debate a respeito da inconstitucionalidade da criminalização do não pagamento de ICMS próprio já declarado pelo contribuinte.

Primeiramente, insta destacar que para compreender a controvérsia em questão é necessário ter em mente que o ICMS é um tributo indireto, no qual quem geralmente arca com o ônus econômico do tributo não é quem pratica o fato gerador que enseja a tributação. Explica-se: Embora o responsável pela prática do fato gerador (conduta descrita na norma tributária que quando praticada enseja a obrigação de pagar tributo) do ICMS seja o comerciante, geralmente é o consumidor final que verdadeiramente arca com o valor do tributo, vez que esse está, na maioria das vezes, embutido no preço da mercadoria que o consumidor acaba por comprar.

Sendo assim, por ser quem efetivamente realiza o fato gerador – no caso a “operação de circulação de mercadorias” – prevista na norma tributária (art. 155, II, da CF e art. 1º da LC nº 87/96) o comerciante é chamado “contribuinte de direito”, enquanto o consumidor, que arca com o ônus financeiro do ICMS, ao pagá-lo embutido no preço da mercadoria, é denominado “contribuinte de fato”.

Nessa esteira, em se tratando da controvérsia que ora se expõe, defende a Procuradoria-Geral da República (PGR) – nos autos do RHC nº 163.334/SC – que, pelo fato de o ICMS ser efetivamente pago pelo consumidor/contribuinte de fato, quando o comerciante/contribuinte de direito o declara, porém, não o recolhe aos cofres públicos, estaria esse último praticando o crime contra a Ordem Tributária tipificado no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90, que comina pena de detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Além disso, sustenta que naqueles casos nos quais reste comprovada a realização de condutas como fraude e falsificação (art. 1º da Lei nº 8.137/90), a penalidade correspondente é a de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão, e multa.

Ademais, afirma a PGR[1] que para sua tipificação não é necessário “especial fim de agir, muito menos que o crime tenha sido cometido valendo-se o agente de algum meio fraudulento”, bastando, para tanto, o “recebimento do valor do contribuinte de fato e o seu não recolhimento aos cofres públicos no prazo legal”, vez que, segundo a PGR, ipsis litteris:

“ Trata-se de crime formal, de mera conduta, que se perfaz com a omissão do agente em recolher, no prazo fixado em lei, tributo que recebeu, mediante cobrança, do contribuinte de fato. O bem jurídico tutelado é o patrimônio público e o dolo é o genérico, consistente na vontade de se apoderar do valor que recebeu a título de tributo. ”

De outra senda, a defesa sustenta que os contribuintes/recorrentes “estão sendo processados criminalmente por mera inadimplência fiscal: não houve fraude, omissão ou falsidade de informações ao Estado”, assim como, que “o não recolhimento de ICMS próprio, por si só, não caracteriza crime, em razão de não preencher a elementar do tributo ‘descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação’ exigida pelo tipo penal do art. 2.º, II, da Lei 8.137/90”, vez que o sujeito passivo da obrigação tributária é o “contribuinte de direito” e não o “contribuinte de fato”, e que em tal situação “a punição é menor, administrativa, por meio de multa, juros e correção monetária”.

Outrossim, também alega que embora geralmente haja o fenômeno da repercussão econômica do tributo (repasse, que o comerciante faz ao consumidor, do ônus econômico de arcar com o tributo), esse não pode ser presumido sem que haja comprovação efetiva de sua ocorrência, vez que o comerciante pode efetivamente suportar o encargo tributário e não o repassar ao consumidor.

Por fim, defende que o “raciocínio construído pelo STJ, ao aproximar o crime do art. 2.º, II, da Lei 8.137/90 do crime de apropriação indébita (CP, art. 168) simplesmente porque a doutrina e jurisprudência batizaram (sem nenhum rigor científico) aquele crime de ‘apropriação indébita tributária’ é ilegal, porque cria uma nova hipótese de criminalização via jurisprudencial, em clara ofensa à legalidade penal”. Acrescenta-se, a esse respeito, que o art. 5º, inciso XXXIX, da CF/88 dá supedâneo a tal argumento, vez que estabelece que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, ou seja, é defeso à jurisprudência a criação de tipo penal, vez que esse papel é reservado ao legislador quando da criação e edição das leis.

Além dos argumentos apresentados pela defesa no RHC nº 163.334/SC, faz-se necessária a exposição de diversos outros de fundamental relevância à contenda que hora se analisa e aos possíveis desdobramentos que a decisão do STF, se em concordância ao entendimento do STJ, pode gerar.

Primeiramente, destaca-se, que quando da necessidade de se aplicar sanção a agente que realizou alguma antijuridicidade, o legislador deve sopesar diversos aspectos para a cominação da pena aplicável, assim como devem fazer os aplicadores da lei, quando realizam a dosimetria da pena, em especial, saber qual a gravidade da lesão, qual o bem jurídico tutelado que restou lesado e, dessa forma, qual a sanção proporcional e necessária para punir o agente e compensar a perda do titular do direito ou bem lesado pela conduta atípica.

Nesse sentido, em se tratando do ICMS declarado pelo contribuinte e não recolhido por esse aos cofres públicos, o bem jurídico tutelado é o patrimônio público, sendo a Fazenda Pública a titular do bem jurídico em questão, qual seja o crédito tributário que a Fazenda possui em relação ao contribuinte inadimplente. Ou seja, o crime nesse caso é nítida e indiscutivelmente patrimonial.

Em se tratando dos bens e direitos tutelados pelo sistema jurídico pátrio, em especial os direitos fundamentais resguardados pela Constituição Federal de 1988 (CF/88) – tais como o direito à vida, à integridade física, à liberdade, à honra e ao patrimônio – flagrante que o patrimônio não está entre os direitos fundamentais mais importantes protegidos pela CF/88, sendo os crimes praticados contra tal direito considerados, geralmente, de menor grau ofensivo, vez que a gravidade de um crime contra a vida, a integridade física ou a liberdade, por exemplo, é evidentemente maior do que de um crime de caráter patrimonial.

Diante desse quadro, parafraseando o Ministro Gilmar Mendes, quando de seu voto na relatoria da ADI 1.055, não há dúvida de que a detenção ou prisão é uma medida executória extrema de coerção do contribuinte inadimplente, que não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot), em sua tríplice configuração: adequação (Geeingnetheit), necessidade (Erforderlichkeit) e proporcionalidade em sentido estrito.

Dessa forma, ao analisar a violação à proporcionalidade em sentido estrito, realizada pela ponderação entre o direito de crédito da Fazenda Pública e a liberdade individual do contribuinte, assim como, quando se tem em conta que a Fazenda Pública dispõe de diversos outros meios processuais executórios para a garantia eficaz do crédito, como a Cautelar Fiscal, a indisponibilidade de bens, o protesto, a inscrição do devedor em órgãos de proteção ao crédito e a própria execução fiscal, se torna silente a desnecessidade da prisão ou detenção do contribuinte inadimplente, medida essa adotada como pena para os crimes de maior potencial ofensivo tipificados pelo sistema penal brasileiro, os quais violam ou ameaçam os direitos/bens constitucionais que necessitam de maior proteção da CF/88, tal como a vida.

Ademais, a própria jurisprudência brasileira, de uma forma garantista, tem cada vez mais limitado a aplicação de penas restritivas de liberdade – tendo em vista se tratarem das sanções de maior gravosidade ao condenado – quando do cometimento de crimes de menor potencial ofensivo, nos quais haja a possibilidade de aplicação de penas alternativas menos lesivas a direitos fundamentais, como os crimes contra o patrimônio, tal como o que ora se discute.

Nesse mesmo sentido, o sistema pátrio paulatinamente tem recepcionado convenções e tratados internacionais que, em matéria de Direitos Humanos, defendem a mesma linha de raciocínio. Nesse âmbito destaca-se a recepção, sem nenhuma reserva, do “Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos” e da “Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica)”, os quais, em seus artigos 11 e 7º, 7, respectivamente, dispõem sobre a vedação à prisão de quem não cumpre obrigação contratual e a vedação à detenção por dívidas, sendo a única exceção o alimentante inadimplente.

Tal tendência se pronunciou mais claramente quando do julgamento da ADI 1.055 pelo STF, na qual foi declarada inconstitucional a lei que autorizava a prisão civil de depositário infiel. Destaca-se, sobretudo, que quando da recepção de tratados e convenções internacionais em matéria de Direitos Humanos, as normas internalizadas passam a possuir, no mínimo, caráter supralegal e infraconstitucional, ou seja, abaixo da força normativa da CF/88 e acima das leis, as quais devem observância àqueles diplomas.

Ademais, quando do julgamento da ADI 3.453 pelo STF, o qual tratava do estabelecimento, pela Lei Federal 11.033/2004, de condicionantes para levantamento de precatório devido pela Fazenda Pública, o voto da Relatora Min. Cármen Lúcia foi no seguinte sentido:

“As formas de obter a Fazenda Pública o que lhe é devido e a constrição da contribuição para o pagamento de eventual débito havido com a Fazenda Pública estão estabelecidas no ordenamento jurídico e não podem ser obtidas por meios que frustrem direitos constitucionais dos cidadãos”.

Igualmente, na ADI 4.425, o Relator Ministro Ayres Britto, em seu voto, justificou seu argumento de violação ao direito de propriedade na compensação prévia de débitos tributários no regime de pagamento de precatórios, da seguinte forma:

“Isso porque a Fazenda Pública dispõe de outros meios igualmente eficazes para a cobrança de seus créditos tributários e não-tributários. Basta pensar que o crédito, constituído e inscrito em dívida ativa pelo próprio Poder Público, pode imediatamente ser executado, inclusive com a obtenção de penhora de eventual precatório existente em favor do administrado. Sem falar na inclusão do devedor nos cadastros de inadimplentes. A propósito, este Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência firme no sentido de vedar o uso, pelo Estado, de meios coercitivos indiretos de cobrança de tributo”.

Sendo assim, diante de todo o exposto, evidente que se o STF seguir a tendência já exarada pelo STJ e criminalizar o não pagamento de ICMS próprio já declarado pelo contribuinte, além da clara violação de direitos humanos e a patente desproporcionalidade, bem como a ausência de necessidade de aplicação da pena defendida pela PGR, tal decisão poderia ensejar em um aumento da sonegação fiscal. O que, consequentemente, resultaria em uma maior dificuldade de fiscalização pelo fisco, vez que o contribuinte, receoso em não possuir condições para pagar o ICMS declarado e, em razão disso, se ver privado de sua liberdade, provavelmente prosseguiria na omissão/não declaração de fatos geradores da tributação.

Desta forma, verifica-se a notoriedade e relevância de tal julgamento na atual conjuntura normativa e jurisprudencial, tanto para os contribuintes, quanto para o próprio fisco, que necessariamente terá que fiscalizar de forma efetiva todas as operações passíveis de tributação pelo ICMS próprio, para que não ocorram com frequência operações que escapem à tributação, cujos créditos possam ser, inclusive, atingidos pela prescrição ou decadência tributárias.

Por fim, necessário salientar que a criminalização de tal conduta dos contribuintes, se declarada pelo STF, por se tratar da criação de precedente, poderá gerar grande mácula à segurança jurídica e, em último caso, ocasionar a criminalização de diversas outras condutas antijurídicas por parte dos contribuintes, como o não cumprimento de qualquer obrigação tributária principal – a exemplo do atraso no pagamento de tributo – ou qualquer obrigação tributária acessória.

 

[1] Fundamentos constantes do Memorial da PGR nos autos do RHC nº 163.334/SC, pág. 3, disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/pgr-defende-prisao-divida-icms-declarado.pdf