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Revista Jurídica publica artigo do professor Wagner Balera sobre a Reforma da Previdência

Leia artigo publicado na Revista Conceito Jurídico pelo professor de Direito Previdenciário da PUC-SP Wagner Balera, sócio do Balera, Berbel & Mitne Advogados:

O debate da Reforma Previdenciária se limita a cortar ou reduzir direitos. E entendo mesmo que muitos desses direitos devem sofrer as transformações inerentes às metamorfoses do mundo do trabalho; ao problema demográfico e assim por diante. Mas, se o debate não for travado em termos de defesa concreta das receitas da seguridade social, a reforma, essa reforma, será apenas mais uma.

Quando se cogita do orçamento, num financiamento público da seguridade social o Estado que se tem em vista não é o Estado Fiscal, preocupado com o que se gasta em com o que se quer economizar. Não é “O Estado Guarda Noturno”, como o denominaram os alemães, que cuidava de segurança pública. Em 1917, com o advento da primeira Constituição Social do mundo, a Mexicana, surge a era do “Estado do Bem-estar Social” ou simplesmente Estado Social, sob o qual foi configurada a Constituição brasileira de outubro de 1988.

O Estado social é o Estado da inclusão social. Isto é, compete ao Estado integrar a comunidade, de tal sorte que não haja os abismos de desigualdade que ainda em nossos dias se verificam.

No perfil do Estado social deve ser buscado como objetivo concreto a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. Tal como se encontra nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, projetados para 2030.

O orçamento é o instrumental formal pelo qual o Estado pode desenvolver as políticas sociais. E se nós quisermos identificar as políticas sociais, nós temos que ir ao art. 6º da Constituição.

O art. 6º sumaria os direitos sociais. Então as políticas sociais são as políticas relativas aos direitos sociais e os direitos sociais estão definidos no art. 6º, que acaba de ser acrescido de um item – o art. 6º da Constituição foi acrescido de um item – enunciando-se mais um direito social que é o direito à habitação. Então agora são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o laser, e a seguridade social: a saúde, a previdência social, a proteção a maternidade, a infância, a assistência aos desamparados e a habitação na forma da Constituição.

Cada uma dessas políticas sociais deve estar estampada no orçamento público, com a destinação específica das verbas que irão custeá-la. E aqui também na configuração do orçamento, o Estado Moderno, o Estado Social, tem dois caminhos possíveis: o Estado pode optar por financiar as políticas sociais através do sistema tributário no seu todo considerado, é um caminho, e esse tem sido justamente o caminho dos países mais desenvolvidos. Os países mais desenvolvidos optam por amalgamar a política social com a política econômica. Portanto, o orçamento geral do Estado financia as políticas sociais, e o paradigma desse modelo de Estado são dois países que já fazem isso há mais de oitenta anos, a Austrália e a Suécia. Eles são os modelos mundiais de países que adotam o orçamento geral do Estado para financiar as políticas sociais. Ou de outra parte, outro caminho, que é o caminho da Constituição brasileira, a definição específica de modos de financiamento das políticas sociais. E a Constituição de 1988 separou nesse segundo caminho – no caminho da rubrica orçamentária para o financiamento social – a Constituição separou uma espécie tributária específica para cumprir essa finalidade. As políticas sociais são financiadas por intermédio das contribuições sociais. A seguridade social é financiada através das contribuições sociais de seguridade social. E no caso específico da Constituição de 1988, o constituinte deu ainda um segundo detalhamento nessa área, o constituinte estabeleceu que na lei orçamentária, isto é, no arcabouço institucional do financiamento público, deverão existir dois – entranhados na Lei Orçamentária – dois orçamentos. Sendo que um dos orçamentos é exclusivamente voltado para o financiamento de políticas sociais, é o orçamento da seguridade social. Então a Lei Orçamentária Anual, que é uma peça única, tem três partes: o orçamento da União, o orçamento dos dispêndios das empresas estatais e o orçamento da seguridade social, art. 165. Este, portanto, é um detalhamento especial da Constituição de 1988, caracterizando o financiamento como um compromisso orçamentário institucional. É uma peculiaridade da nossa Carta Magna.

Colocada, portanto, esta questão de que no Estado Social existe um modo de financiamento público, cumpre verificar o processo de construção desse orçamento, o que nós poderíamos chamar, numa linguagem com a qual estamos familiarizados, os operadores do Direito, de devido processo orçamentário. Há um ritual para a elaboração do orçamento público, notadamente o orçamento das políticas sociais.

O art. 227, § 7º da Constituição, no atendimento dos direitos da criança e do adolescente, isto é, de uma das políticas sociais estampadas na Constituição, exige que se leve em consideração o disposto do art. 204, onde o art. 204 é o primeiro artigo constitucional que fala do devido processo orçamentário. Como deve ser elaborado o orçamento público na área social e tal preceito serve como modelo não apenas para a seguridade social, como também para as demais políticas sociais exemplificadas nesse § 7º do art. 227.

Diz o art. 204 da Constituição, mostrando que a Constituição do Estado Social é uma Constituição democrática que, as ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social. O Estado Social é um Estado Orçamentário, que se baseia em diversas diretrizes das quais merece destaque a que se encontra referida no art. 204, inciso II, da Constituição: participação da população, por meio de organizações representativas na formulação das políticas. Retenhamos então essas expressões: “formulação das políticas” e no “controle das ações” em todos os níveis.

O primeiro passo da elaboração de um orçamento consiste na formulação das políticas, isto é, no conjunto de problemas sociais que cumpre enfrentar qual a hierarquização desses problemas? Qual deles vai ser atacado em primeiro lugar? Lembremo-nos de que o objetivo é ambiciosíssimo, erradicar a pobreza. Então, diante desse conjunto de problemas, qual deles merecerá prioridade? Formulação das políticas significa eleger prioridades, já que o orçamento – ninguém terá essa pretensão – será capaz por si mesmo de resolver todos os problemas da comunidade. A erradicação da pobreza é um vir a ser, e isto vale para interpretação da Constituição como um todo. Muito bem, então a Constituição é um programa, a Constituição não muda a nossa vida, ela é um vir a ser, como todas as propostas do Direito. O Direito é um permanente vir a ser.

Bem, então, primeiro: formulação das políticas. Para a formulação das políticas é que são criadas instâncias democráticas, dentre elas a Reforma Previdenciária que se acha sob apreciação do Congresso Nacional. Lá deve ser discutido o caminho do dispêndio público necessário à execução dos seus projetos. É assim que se dá a primeira passada na construção do orçamento. O devido processo orçamentário, portanto, começa com um projeto de formulação de políticas que deve nascer da comunidade reunida no Congresso Nacional. Seria bom que o Congresso Nacional convocasse audiências públicas para discutir o orçamento da seguridade social, nos estilos do assim chamado orçamento participativo que se praticou Brasil afora.

Para uma peça que pode ser considerada como espécie de programa de governo, o denominado plano plurianual, que compreende um período de gestão governamental, esse plano deveria contemplar com rigor as receitas e os dispêndios da seguridade social.

A segunda instância da elaboração da formulação das políticas, o que fazer – isso que condiz com a formulação de políticas – se estampa na lei de diretrizes orçamentárias, a lei sobre as leis de orçamento, é uma pré-legislação do orçamento. Lei que se destina a especificar as metas e as prioridades. Portanto a comunidade definiu as metas e as prioridades e o poder político vai definir dentre aquelas metas e prioridades, quais serão efetivamente cumpridas. É a instância de decisão política, definida na Constituição, dentro da estrutura fundamental do poder, quem definirá o que efetivamente é meta e prioridade. Esse assunto é objeto da lei de diretrizes orçamentárias. A partir da lei de diretrizes orçamentárias se constrói a lei orçamentária anual, da qual faz parte o orçamento da seguridade social.

No orçamento anual estarão especificadas, dentre aquelas metas e prioridades, as partes financeiras ou de custeio que cabem a cada um dos itens que compõe o orçamento do setor, o orçamento social, ao qual especificamente estamos nos referindo. Ora, o fato de existir esse ritual previsto na Constituição, pode nos fazer concluir que a Lei Magna estampa um princípio implícito, e a estrutura dos comandos constitucionais reconhece que existem duas modalidades de princípios constitucionais: os princípios expressos e os princípios implícitos, é o que prevê o art. 5º em seu § 2º.

Art. 5º § 2º da Constituição diz assim: os direitos e garantias expressos nessa Constituição não exclui outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados. Desse modo, a Constituição adota, implicitamente certos princípios, os implícitos, teoria que vem desde Ruy, Barbalho, Maximiliano, Francisco Campos e outros, os princípios implícitos são os que decorrem do regime que a Constituição adota. Então nós podemos enunciar um princípio implícito, é o “princípio do planejamento”. Tal princípio do planejamento permeia toda essa construção constitucional do orçamento ou o que chamo o devido processo orçamentário.  É em princípio implícito no direito brasileiro, porque em outros países a Constituição determina formalmente o princípio do planejamento. É o que faz a Constituição francesa de 1958, que expressamente enuncia o princípio do planejamento e, também, a Constituição alemã que tem uma lei parecida com a lei de diretrizes orçamentárias.

O orçamento não pode prever dispêndio sem custeio, assim como não pode prever custeio sem dispêndio. É inerente à ideia de orçamento o equilíbrio financeiro.

O Estado só pode contar com a receita previsível; só pode gastar o total daquilo que – pela experiência pretérita da arrecadação fiscal (ou parafiscal, no caso da seguridade social) – entrará na conta única do Tesouro Nacional, devidamente carimbado para a seguridade social.

O orçamento necessariamente deve estimar os dispêndios a partir dos ingressos. Ergo, é necessário que o planejamento formule os cenários possíveis dos ingressos, já que a efetivação dos ingressos dependerá de variáveis com as quais não contam os planejadores. Será que todos vão pagar os tributos? Todos vão pagar os tributos em dia? Todos vão cumprir rigorosamente com as suas obrigações perante a comunidade? Portanto essa variável de difícil determinação, depende de dados que o Estado brasileiro se recusa a computar, mas que, parece proposital, o Estado brasileiro se recusa a registrar, montando um banco de dados a altura das necessidades do sistema de seguridade social.

Ainda agora não há banco de dados do Brasil disponível ou acessível, para que se saiba quais são as necessidades efetivas da população. Especialmente daqueles que tem direito à inclusão social. Isto é, dos excluídos da vida social brasileira, da grande massa de excluídos. Então não há o elemento indispensável para a construção do plano, dos planos, melhor dizendo. O que, no caso do princípio do planejamento, pode ser identificado com uma expressão, o plano de custeio. O plano de custeio é o que define quanto se pode ou se deve gastar com aquele item por exemplo, saúde. Tomemos esse exemplo. Pela natureza constitucional de tal direito, o mesmo deve ser conferido a todos. Diz o art. 196 da Constituição: a saúde é direito de todos. Só há um preceito da Constituição que utiliza a expressão relevância pública. Portanto estamos diante de relevância outorgada, qualificada, pela Carta Magna.

É o art. 197 que diz serem de relevância pública: as ações e serviços de saúde. E a Constituição incumbe ao Ministério Público o zelo dos serviços de relevância pública.

Eis aqui a ligação constitucional do Ministério Público com o tema do financiamento das políticas sociais. É que as ações e serviços de relevância pública merecem a tutela específica do Ministério Público. O Ministério Público foi erigido pela Constituição como ente tutelar dos serviços e das ações de relevância pública, conforme expressão clara do art. 129 da Constituição.

Então o plano de custeio, que é o projeto dos dispêndios, deve, como um anexo que é da lei orçamentária, devido processo orçamentário, o plano de custeio é o anexo da lei orçamentária. O plano de custeio estabelecerá, item por item, os recursos necessários para o cumprimento daqueles programas. Assim, por exemplo, o programa do SUS – Sistema Único de Saúde, deve auferir tantos recursos para a atenção dos tantos milhões de pessoas que procuram os serviços médicos da rede pública. Tudo considerado o crescimento normal da população, que seguirá exigindo a ampliação do serviço de atenção médica. Então, a partir desse dado, se constrói a previsão orçamentária no plano de custeio. O plano de custeio orça que serão gastos com consultas médicas, no exercício financeiro de 2019, tantos bilhões de reais.

Por que esses dados não estão aparecendo com claridade no atual debate da Reforma Previdenciária?

Por que não se explica como foi causado o atual desequilíbrio entre as receitas e os dispêndios?

O financiamento dos programas sociais se dá por intermédio do orçamento específico, sustentado pelo plano de custeio. A natureza, portanto, do plano de custeio que é um anexo da lei de orçamento é a de definir, rubricar, o que vai para cada setor. Essa é a peculiaridade, a virtualidade do plano de custeio. Instrumento específico do Estado Social, que é o Estado do orçamento.

Cada um dos programas da seguridade social, saúde, previdência e assistência, carece de recursos para ser viabilizado financeiramente.

Quando o país convive com o fenômeno do desemprego, no elevadíssimo percentual de 14%, está sendo violado o objetivo constitucional do pleno emprego e essa multidão de desempregados faz jus à cobertura de um programa social que é o seguro-desemprego.

Os desempregados não estarão desamparados, excluídos, mas protegidos pelo programa social próprio.

Nesse particular a Constituição de 1988, também deu um passo avante. Estabeleceu no art. 239 o tipo de receita necessária aos programas de desenvolvimento. O art. 239 estabeleceu que a contribuição social para o PIS e para o PASEP, programas já extintos, se destina ao financiamento de programas sociais. Uma parcela dessa contribuição será destinada a financiar o desenvolvimento, mediante aporte de recursos vertidos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador, o FAT, e desse fundo serão retirados recursos para financiar projetos de desenvolvimento, além daqueles necessários ao pagamento do seguro-desemprego.

Portanto, o modelo constitucional previu, inclusive, essa segunda rede de financiamento social que é a de projetos de desenvolvimento, através do fundo de amparo social ao trabalhador.

Evidentemente, o critério para que se emprestem recursos do FAT, deve ser o do desenvolvimento, com consequente e necessário fomento ao emprego.

Há, como foi dito aqui, dois caminhos para o financiamento público das despesas sociais: o financiamento pelas receitas gerais do Estado, presente nos países mais avançados e o financiamento modelado pela Constituição de 1988, que se dá por intermédio das chamadas contribuições sociais. Estamos em um modelo híbrido. A Constituição traçou um panorama ideal, mas permitiu o desvio para um modelo híbrido, de modo que há um financiamento direto das contribuições sociais e um financiamento indireto das receitas orçamentárias gerais.

Ora, quando se discute – ou melhor, quando não se discute a causa do desequilíbrio financeiro da seguridade social ninguém quer discutir o que e em que montante o orçamento da seguridade social tem sido desfalcado ao longo do tempo. Sem entrar no mérito, não se pode ignorar as medidas de renúncia fiscal que desfalcam o orçamento social. Quer dizer dos recentes programas como o REFIS, o PAES, o SIMPLES e o SUPERSIMPLES, que retiraram substancial parcela de recursos das contribuições sociais previstas e orçadas para o implemento das políticas sociais. Eis a hibrideza própria do perfil da Constituição. Ao abrir a possibilidade de criação de fontes próprias de orçamento que são as contribuições sociais, o constituinte se esqueceu de proibir expressamente o desvio desses recursos, seja de forma direta, como se faz com autorização constitucional através da Desvinculação das Receitas da União (DRU), seja de forma indireta, por meio de desonerações fiscais ou de parcelamentos de longo prazo que premiam os maus pagadores.

Esse debate não está sendo realizado.

O debate da Reforma Previdenciária se limita a cortar ou reduzir direitos.

E entendo mesmo que muitos desses direitos devem sofrer as transformações inerentes às metamorfoses do mundo do trabalho; ao problema demográfico e assim por diante.

Mas, se o debate não for travado em termos de defesa concreta das receitas da seguridade social, a reforma, essa reforma, será apenas mais uma.

Tão logo foi promulgada a Emenda 20, de 1998, já se começou a falar de outra reforma, que efetivamente ocorreu em 2003. E nem mesmo se esperou para a execução dessa reforma. No meio do caminho uma PEC paralela começou a modificar a emenda de 2003, e fez surgir a Emenda 47, de 2007.

Será que não acontecerá o mesmo com a reforma ora em fase de elaboração?